"Sou agora um ser brotado da queda de uma estética emocional,
sou um ser regressado do tombo de um beiral alto
que crê romanticamente no amor.
Sou um afogado desesperado batendo nos bancos de areia,
exposto ao tufão das memórias das frases.
Quase morto, quase.
Me espatifei.
Sobrevivi.
Ondas revoltas me lançaram de costas às lascas finas dos corais.
Mas felizmente e como sempre, um cardume de versos me esperava no cais!"
(Camões, em 'O náufrago')
A sala é de um nono ano, ou, antiga oitava série. Não me atrevi a comentar na sala dos professores que o plano seria ler Camões aos alunos. Não queria ser desencorajada por alguns que não acreditam mais. Choveu muito na noite anterior. Um aluno contou que a água entrou em sua casa. Muitos pareciam sonolentos. Comentei que havia lido o que haviam escrito sobre suas vidas. Foi um pedido meu. Eu preciso sempre saber para quem estou dando aula. Eu fiz questão de dizer que eu estava feliz em dar aula para pessoas tão especiais. Em seus depoimentos, eu descobri de que estilo de música eles gostam; quais são os sonhos; seus medos; suas decepções; as perdas já enfrentadas; etc. E por causa do que eu havia lido em seus relatos, pensei neste poema. Sim. Neste poema acima e escrito há tantos anos. Então, apaguei as luzes da classe. Pedi para que ficassem relaxados. Que apenas ouvissem o poema. Ah! Também pedi para se desprenderem da ideia de que todo poema é meloso e careta. Comecei então a ler, de-va-gar, linha por linha, "O Náufrago". Perguntei à classe se haviam entendido. Eles disseram que não entenderam nada. Eu disse que isso é normal. Ninguém entende tudo na primeira leitura. É preciso ler de novo e com vários olhares. Li de novo. A cada linha, eu me demorava "traduzindo" o poema. Sim. Um poema é quase sempre escrito em "outra língua", a das metáforas. Fui até a lousa. Dei alguns exemplos de metáfora. Voltei ao poema. Pedi para que eles se imaginassem na situação de um náufrago. Na verdade, enquanto se imaginavam no mar revolto, entre caldos e bancos de areia, também perguntava se haviam sofrido perdas amorosas na vida. Perguntei qual a sensação disso? Qual a sensação de acordar depois de uma dor? A poesia desperta sensações. De repente, a classe foi mudando. O sono deles foi passando. “Sou agora um ser brotado da queda”. A dor ainda persiste depois da queda? Sempre que caímos, nós nos questionamos sobre os motivos. Perguntei ainda se haviam sobrevivido e como se sentiam. A resposta foi: mais fortes! Eu dei uma pausa. Silenciaram. Eu li os dois últimos versos: “Ondas revoltas me lançaram de costas às lascas finas dos corais. Mas felizmente e como sempre, um cardume de versos me esperava no cais!". Alguns olhares marejados me fitaram: tem um cais! Talvez, olhos inundados de tanta água, de tanto mar daquele poema. A poesia às vezes faz isso: traz uma sensação tão viva que nos transporta. Os sentidos ficam aguçados quando seguimos as sugestões imagéticas do poeta. E ainda, nos revira por dentro. Acorda umas dores e acalenta outras também. Sem falar das trocas de palavras, por exemplo, “cardumes de peixes” por “cardumes de versos” nos mostrando a possibilidade de liberdade num poema. Na poesia eu posso tudo! Resolvi acender as luzes. Perguntei o que haviam achado da aula de interpretação de textos. (Bem diferente daquela típica aula em que o professor chega e diz: abram o livro na página 32, copiem até a 35 e respondam às perguntas até a página 36). Todos riram.
Isto foi ontem, mas até agora estou inundada deste poema. Até agora estou feliz pelas surpresas desta aula que não tinha cara de aula. Giuseppe Tomasi disse uma vez que a criança aprende o que o adulto faz, sem querer. Partindo destas palavras, acrescento: "A criança aprende, sem querer, o que o adulto ensina, com prazer". Sim, é sem perceber e com prazer que mostramos a nossos filhos quem somos. E não com discursos vazios e enfadonhos. Ou seja, chega de atos e movimentos mecânicos de cópia na escola. Necessitamos todos de aulas mais vivas. Necessitamos todos, mais vida! Quem decifra um poema, decifra seus labirintos por dentro, decifra o mundo e o resto das letras. Nossa escola precisa de aulas com significado. Já vi professores requisitarem três lousas para uma única sala de aula. E o aluno, terminando de copiar as letras cansadas da professora no rodapé da terceira lousa, pensa: “Quando eu vou usar isso; estou aprendendo isso pra quê?”. Ontem, enquanto estudávamos Camões e seus versos, pesquisamos os significados de palavras do poema e suas aplicações em outros contextos. Relembramos juntos o que é linguagem conotativa e denotativa. Falamos sobre a coerência e a coesão encadeando cada ideia-verso do poema. Falamos de gradação. Desmitificamos também a visão careta que a maioria das pessoas tem acerca da poesia. E de lambuja, fomos acariciados pela inefável sensação de beleza que a arte poética proporciona ao leitor.
Escrevendo aqui para vocês e pensando como a poesia é atemporal, lembrei-me agora dos versos de um poema da Elisa Lucinda:
“Ah, é isso a poesia:
um souvenir moderno,
um souvenir eterno do tempo.”
Um beijo a todos, professora Mônica Amorim