domingo, 21 de fevereiro de 2010

Ele encarnou a literatura

http://palavrasemrede.wordpress.com/2008/11/08/a-poesia-e-irma-gemea-da-magia/


Rubem - Na minha opinião, se alguém quiser massacrar o amor pela língua portuguesa, basta eleger a norma culta com primeira forma de trabalhar com o aluno. É como pretender fazer a anatomia do texto antes de conhecer seu sentido, sua mensagem, sua música. Já afirmei que a análise sintática faz a anatomia do texto. Existem aspectos formais que são muito importantes, mas a alma do texto não é coisa formal, a alma do texto é a emoção. Antes de estudar a forma, de mergulhar em seus detalhes, é necessário captar a essência, a alma, a emoção. Não acho possível que alguém retenha algum conhecimento se não tiver emoção. E poesia pode ser um elemento de emoção para se reter o conhecimento.


Elisa - Memória e emoção se grudam, se integram. Essa é a única possibilidade; para mim, é na emoção que a memória se cola.

Rubem - Voltando à questão da escola, o problema é que ela retirou a emoção do processo de aprendizado. E sabe por quê? Porque a escola só trabalha com conteúdos que podem ser avaliados.

Elisa - As pessoas que chegaram ao cume das suas carreiras - seja um Nelson Freire, seja um Einstein ou um Freud - eram movidas tanto pela emoção quanto pela razão, claro.

Rubem - A razão pertence à caixa das ferramentas, a emoção pertence à caixa dos brinquedos.

Elisa - (...) Eu não desprezo a gramática, minha experiência com análise sintática foi realmente muito boa. Tive um professor apaixonado por ela, (...) Por isso acho que trato essa questão como ferramenta que muitas vezes me salva. É preciso que os professores ensinem os alunos a utilizá-las, fazer uma ligação entre elas e a emoção, o brinquedo, a vida, eu sou o sujeito determinado da minha oração principal, que é minha vida. (...)

Rubem É certo, mas é que você aprendeu a gostar.

Elisa – Eu gostava de ler, e aí um dia me explicaram... Eu já tinha a emoção antes, já era uma boa leitora.

Rubem – O que estamos discutindo é o seguinte: se for apresentado ao aluno um texto, poético ou não, pela primeira vez, com aquela carga de “anatomia”, isso pode ser assustador.

Elisa – Sim, mas se ele já tiver sido fisgado emocionalmente, torna-se uma brincadeira. A partir daí, qualquer um pode viajar pelo tema que já ama.

Rubem – Temos de amar primeiro. Eu entrei para a literatura muito tarde, mas fui muito influenciado por um professor que tive no ginásio. Ele se chamava Leônidas Sobrinho Porto. O Leônidas tinha uma cara de bolacha. Quando chegou à classe pela primeira vez, ele disse assim: “Temos duas questões preliminares para resolver. A primeira questão é a presença. Fiquem tranquilos, todos vocês tem 100% de presença. A segunda questão a ser resolvida é relativa à aprovação: informo que todos vocês já passaram. Então, tendo deixado de fora essas duas questões, vamos nos dedicar à literatura”. Assim, quando ele dava aula, todos nós ficávamos paralisados, porque ele encarnava o que nos apresentava. Começamos a perceber que literatura era uma coisa absolutamente fantástica. Ele não nos ensinou detalhes sobre literatura, nem sobre análise sintática, nem sobre coisa nenhuma. Ele encarnou a literatura, e aquilo ficou absolutamente inesquecível. Então, vejo muito disso no professor, se o professor não for possuído por essa paixão, não poderá comunicar isso.

Elisa – É verdade. Por exemplo, eu fui uma aluna de geografia “desperdiçada”. (...) Depois até escrevi um poema sobre isso, chamado “Mapa-me”. O que quero dizer é o seguinte: eu poderia ter me aprofundado em geografia. Mas, então, o que aconteceu? O problema é que eu era obrigada a decorar: Peru – capital Lima.

Rubem – Sem dúvida um bom professor é aquele que transmite uma emoção junto com a informação. Porque a palavra emoção, do latim, tem sua origem em “mover”; emocionar, “coisa que move”; comover, “mover junto”. (...) O que isso tem a ver com pedagogia?

Diálogo extraído do livro "A poesia do encontro", Papirus 7 Mares, 2008.

Um comentário:

dade amorim disse...

Esse diálogo devia ser lido por todos os professores que desejem quebrar o gelo, aproximar-se de seus alunos e fazer um bom trabalho em sala de aula. Esses dois são 10.

Beijo, Mô.